Embora o termo “audiovisual” seja jogado muito por aí para
descrever o cinema, a verdade é que ele é um meio muito mais visual do que
auditivo. Claro que sabemos que um bom desenho de som pode fazer toda a
diferença, e que basicamente toda boa história é contada com elementos do som,
e que embora tenhamos pelo menos 3 décadas de cinema mudo, bem, ele não era
mudo completamente: os diálogos nos
cartões invadiam o nosso cérebro na forma das nossas vozes, ou para pessoas com
uma maior boa vontade imaginativa, com as vozes que eles imaginavam para os
personagens – e , claro, as trilhas sonoras já estavam lá, nos comunicando
parte do sentimento e do clima.
Mas o que eu quero dizer é que, por mais que o som seja
importante, no cinema existe uma preocupação muito maior com o campo visual, com a eficiência do movimento em cena, com a
consistência na troca de planos, e com todo os símbolos visuais envolvidos,
desde a cor de uma roupa até a decisão do enquadramento. Digo isso tudo porque
fico embasbacado com este filme dos irmãos Dardenne: se o cinema é mais calcado no que os olhos
captam, porque progressivamente os filmes tem se tornado mais e mais
preguiçosos, a ponto de lhe narrarem exatamente o que mostram? Porque, afinal,
não temos mais filmes como este?
“O Garoto Da Bicicleta”, de 2011, é um feito que demonstra
que as emoções mais cruas não precisam sempre de todo um aparato melodramático
por trás para atingirem a todos, e que justamente por não se deixarem levar
pelo vislumbre desmedido, os diretores acabam falando mais próximos ao nosso
coração com uma facilidade assombrosa.
Cyril é um garoto confuso. Deixado pelo pai subitamente já com 10 anos, num orfanato, ele é adotado nos finais de semana por Samantha,
mas ainda assim procura o pai e acaba descobrindo, de maneira seca e direta, o
mundo brutal e injusto no qual vivemos. Cheio de planos longos e se utilizando
espertamente da luz natural, os Dardenne mantém aqui uma coerência estética com
o único outro filme deles que assisti, “O Filho”, de 2002, mas embora os filmes
tratem do tema da busca, aqui não há o enfoque claustrofóbico que o filme
anterior tem; as descobertas do protagonista, Cyril, tem um caráter muito mais
inocente.
O que mais impressiona é justamente a dinâmica do “audiovisual”
dentro do filme. Adotando a postura do “show or tell”, os Dardenne evitam a redundância
narrativa com vigor, tornando tudo sempre mais interessante para o nosso lado.
Por exemplo, em uma cena em que o protagonista joga videogame na casa de um
quase desconhecido, que até há pouco lhe era hostil, o que poderia ser um
diálogo “bate e bola” acaba se tornando basicamente um monólogo, tamanho o
cuidado dos diretores (e também roteiristas) em manter as repostas de Cyril no
nível do que é apenas necessário.
Ainda nesta cena, há um elemento de tensão crescente com o
qual os diretores trabalham de forma a sempre esconder qual será o
desdobramento da cena; de fato ficamos nos perguntando qual é a intenção do
rapaz que convida Cyril a sua casa, e há um sentimento de medo pelo destino do
garoto que se torna crescente. Outra
cena que ilustra bem a maestria dos irmãos nesse tipo de cena é quando, num dado
momento, o garoto retorna ao pai com dinheiro ilícito. O take continuo do
pai abrindo a porta e depois voltando para o restaurante com Cyril observando a ação se desenrolando
pela janela, nos cria mais tensão que talvez uma cena cuidadosamente iluminada e
lotada de planos.
Essa espécie de estoicidade narrativa, beirando a “secura”,
é justamente o que torna o filme mais humano. Momentos nos quais as emoções
explodem geralmente são tomadas de completo silêncio, ampliando a emoção na
tela de uma forma quase palpável. Talvez
o mais curioso seja quando percebemos, dentro desse silêncio todo, que o protagonista
possui um tema próprio, que toca brilhantemente nos momentos em que acontece
algo que o transforma.
“O Garoto Da Bicicleta” encerra com uma cena de teor
enigmático, que culmina no silêncio e na tensão que citei. É de uma honestidade
intelectual enorme, já que não se preocupa em satisfazer o espectador com certezas.
E podem ter certeza, esse é um dos sinais de um grande filme.
O ator mirim Thomas Doret junto dos diretores Jean-Pierre e Luc Dardenne |
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